Sou Ana Maria Obranovich Rosa. Com 5 anos entrei pela primeira vez num setor oncológico de mãos dadas com minha mãe. Era no primeiro andar de um hospital público enorme em Buenos Aires. Ao subir as escadas tinha um hall amplo e de cada lado uma enfermaria com 50 leitos cada. O lado direito feminino, o esquerdo masculino. Naquele tempo pouco podia ser feito em relação aos tratamentos. Os pacientes vinham de diferentes estados e cidades e eram internados para fazerem seus tratamentos, ou terem um fim de vida com dignidade.

Muitos ficavam horas, dias, meses a fio sem uma visita. Nunca vi acompanhantes. Nesse dia, minha mãe foi leito por leito me apresentando, um a um, cada paciente. Lembro de ficar surpresa com ela conhecer o nome de cada um. Quando chegávamos perto, as pessoas sorriam com verdadeira alegria.

Comecei a insistir para ir todas as semanas com ela. Começou a me levar e eu fiz amizade com todos os pacientes e colaboradores. Eu fazia em casa desenhos para cada um deles, aprendi matemática com eles. Muitos que sabiam fazer artesanato me ensinavam, outros me contavam histórias. Na escola, tinha cinema no sábado e, no domingo, na igreja, por isso eu sempre contava os filmes para eles.

Aprendi a me despedir deles, entendendo quando algum estava em estado grave; chegava a fazer orações singelas, do jeito de criança, para essa pessoa virar uma estrela iluminada. Quantas vezes cheguei e encontrei o leito vazio, e alguém me falava, fulana(o) foi para o céu. Comecei a aceitar a morte nessas enfermarias. Mas também vi lutas, sonhos, esperanças. Minha mãe inventava coisas para eles, eram épocas de conexões difíceis, as cartas demoravam muito tempo a chegar, não tinha TV no Hospital. Então ela criava um “pic-nic” nos jardins. Convocava cabelereiros para fazer cortes e ensinava a fazer penteados e maquiagem (pó de arroz e batom).

Todos os Natais tinha alguns pacientes na nossa mesa familiar. Ela falava que o amor, o cuidado, a fé e os abraços curavam. É, eu acreditava e ainda acredito.

Vi muitos saírem para sua morada eterna, mas também vi muitos que lutaram com muita garra, dentre eles uma mulher que tinha 5 filhos em outro estado. Ficou internada muito tempo, muito… sem visitas… Chamava-se Justina. Ela veio a falecer perto da sua família, muitos anos depois, de outras causas.

Havia um paciente que me ensinou a fazer crochê, numa época que homem não podia fazer isso. Ele aprendeu com minha mãe. Um dia, nos entregou 2 cachecóis para mandar para seus filhos, não sabia ler nem escrever, minha mãe fez uma cartinha ditada por ele cheia de emoção, explicando que esses cachecóis eram seu presente de Natal. Minha mãe colocou no correio, que deve ter demorado meses para chegar. Poucos dias depois o Guilherme faleceu, feliz.

Quando fiz 8 anos meu pai foi diagnosticado com câncer de pulmão. Naquela época, a internação durava de segunda a sexta-feira no hospital e, nos fins de semana, voltava para nós. O que era motivo de grande alegria, éramos 7 filhos desse casamento, alguns muito pequenos. Ter o pai em casa era motivo de muita alegria, fazíamos brincadeiras, nos contava histórias de Croácia, quando estava bem fazia comida típicas ou saíamos de passeio todos juntos.

Ele comentava que no hospital onde ficava todo era muito triste, cinza, parecia um local a esmo. Por isso, quando estava visitando “meus pacientes” e alguém ligava o rádio a gente dançava, cantava e dávamos muitas risadas. Não parecia um hospital, a alegria e a esperança viviam nesse lugar. Queria poder mudar o local onde meu pai fazia tratamento, já que era impossível, ajudava minha mãe a criar um setor humanizado, neste que eu frequentava.

Nunca mais quis deixar de fazer isso. Parecia minha vocação.

No Brasil, sempre quis ajudar os pacientes com câncer. No início, doando um ou dois lenços e quando conseguia, doava uma peruca de Kanecalon. Não interessava o que podia dar de material, o importante era e é, o abraço apertado, o meu calor humano cobrindo aquela pessoa com meu carinho.

Certa vez, estava em Buenos Aires numa loja chiquérrima com minha irmã. Entraram duas jovens, uma delas careca, muito magra e debilitada, com aquela cor característica da paciente oncológica. Levava um lenço preto na sua cabeça. As vendedoras, talvez por ignorância, a olhavam com dó e falavam entre si. A moça constrangida, falou para a outra, vamos, não adianta querer sair para ver as pessoas me olhando como bicho estranho. Quando estavam saindo a chamei e pedi para me ouvir, tirei da minha bolsa um turbante e falei, “posso te mostrar?” E sem delongas mostrei como usar um turbante colorido. Óbvio que vendedoras e clientes me olharam primeiro horrorizada, depois começaram a relaxar. Após isso perguntei se ela aceitaria meu presente, e caso positivo, se permitiria que eu colocasse para ela. Aceitou com um sorriso. Coloquei nela e a convidei a continuar fazendo as compras comigo.

Perdi meu pai para o câncer após 8 anos de muita garra e luta, perdi também o pai do meu filho Miguel para um câncer de próstata, perdi minha grande amiga Lilian para um câncer de mama e meu cunhado Osvaldo, que era um homem de hábitos saudáveis e sem vícios, para um câncer primário “desconhecido”. Em 2019 perdi meu irmão caçula Pablo para um câncer de estômago. Isso acirrou mais minha vontade de acolher e dar amor a quem recebe esse diagnóstico.

Hoje presido o Instituto AMOR ROSA, criado por ex-pacientes ou pessoas que tiveram câncer na família, ou perderam alguém para o câncer.

Nosso objetivo maior é dar acolhimento, amor, dignidade e cobrir algumas de suas necessidades básicas.

Durante a pandemia tivemos que nos recriar para atender, até com cestas básicas de alimentos e higiene, pacientes que nada têm.